3.8.10

Sem título 1

A queda de um ídolo que foi opressor não pode ser rápida, e nem com medidas extremas e desesperadas. Nada de proibição. Primeiro ele toma o golpe da vergonha, depois volta querendo chocar, quando algo choca, logo depois vem a banalidade, as pessoas se acostumando ao que era chocante. Logo, o que os adoradores desse ídolo tanto idolatravam, que era o medo e respeito que colocavam em quem não seguia seu ídolo tolo, cai por chão. E todo o significado do símbolo se perde em camisetas de design batido.

22.7.10

O estouro dos Gnus ensandecidos.

Gosto de caminhar e observar o trânsito. 10 minutos de caminhada bastam pra perceber o delicioso, e nada coincidente, resumo da sociedade:

Milhares de Leis que ninguém sabe, e as que se sabe, ninguém respeita. Nem mesmo quando elas existem estritamente para proteger a própria pessoa que esta atrás do volante e mais ninguém. Nada como chamar de acidente quando uma pessoa bebada, e sem cinto, faz um contorno proíbido e mata, ou morre. Prato cheio pra estampar jornalecos e um especial de meia página, quem sabe uma inteira, escrita por um abutre disfarçado de jornalista.

Se uma família inteira se vai, ou então quatro ou cinco adolescente de classe média morrem, aí sim temos uma tragédia perfeita, com toda a dramaticidade que a acompanha. Vale também xingar o “porco” do guarda de trânsito que te multou por falta de cinto. É aquela tal máfia das indústria das multas, umas das coisas do “por isso que o Brasil não vai pra frente”.

A facilidade de se trocar de personalidade que o trânsito nos trouxe é fabulosa. Tendo o dinheiro necessário, você vai de um sedan sóbrio, lindo, gigantesco que impõe todo respeito que você merece pelo seu cargo atual, ou sua condição financeira, a um sport bem de vida e jovial - um bon vivan que adora os pequenos prazeres da vida. Como o vento nos cabelos a 160km/h.
Além de uma gigantesca camionete que te permite ignorar carros menores, sinais, convenções e, até algumas calçadas, que pouco tem importância pra um homem de tal tamanho e tração.
É maravilhoso se vestir com o preço de algo. O design, a cavalaria, as cores. Um aviso pros outros de quem você é, e de quanto pagou por isso.

A buzina é voz de fábrica gritando pros outros “ ei você é um obstáculo a minha pressa”. Pressa essa, que sempre permite passar na frente de outros, estacionar onde não se pode ou fazer qualquer bobeirinha sem importância por aí. Mas ei, você está com pressa, isso já desculpa quase todos os erros da humanidade, por que seria diferente pra uma simples cortada? Você tem todo o direito. Assim como o direito de espernear feito uma criança mimada, gritar incontáveis palavrões por segundo e o usar do clássico dedo do meio pra fora da janela, tudo porque alguém pensou que a pressa dele fosse mais importante que a sua. Talvez se seu carro fosse maior ele te respeitaria.

E o lado sábio que a experiência no trânsito nos trás? Isso sim é de se admirar. Adoro ver como os motoristas profissionais já descobriram que eles sabem demais. Já sacaram que as leis devem ser aplicadas a semi-adolescentes que acabaram de sair da auto-escola. As leis não servem pra quem tem anos de direção, afinal, nunca vi acidente causado por quem dirige há alguns anos. Por isso motoristas de taxi, ônibus, moto-boys e outros profissionais são motoristas tão bons e aproveitam bem melhor o tempo no trânsito, usando espaços proibidos que os motoristas menos experientes ainda não sabem usar, ou andar numa velocidade bem acima da permitida que só quem domina a direção consegue conceber, ou mesmo usando algumas regras só quando se faz necessário, como frear alguns metros do radar, ou simplesmente molhar a mão do guarda que te pegou a 170km/h numa via onde mal se pode andar a 80 mantendo qualquer segurança.

E também temos as valiosas lições que aprendemos quando as pessoas mais velhas contam orgulhosas em suas histórias. Quebras sucessivas de records em viagens. “Fiz Franca - São Paulo em três horas uma vez, e ainda parei pra comer. Boa época aquela que não tinha radares” - Diz o tio pro sobrinho que olha admirado.
Os olhos dele brilham, mal pode esperar pra comprar sua liberdade. O outro nome do carro. Com ele, a adolescência se vai e a fase adulta chega. E não existe vida social sem ele. Nem sei se existe uma pessoa em sí sem ele. Nada melhor que curtir a época da faculdade sem nem saber como se chegou em casa de tão bebado. Uma noite perfeita é aquela em que não se lembra de nada e que o carro chegou inteiro.

O clima do ar condicionado é sempre agradável e controlável. Viver numa ilha isolada do mundo é demais. Metal e vidro protegem o seu interior de coisas desagradáveis, como o cheiro de um lixão, corrego ou fumaça de queimadas. Além disso, o vidro fumê esconde quando não se quer encarar algo que incomoda. Como crianças e adultos jogados por aí e outras coisas terríveis de hoje em dia. O governo tinha que dar um jeito nesse pessoal. É um martírio parar nos semáforos hoje em dia, haja paciência.
Nada melhor que chegar em casa e pensar nos velhos tempos, quando as cidades eram mais humanas e as pessoas caminhavam pela rua ou ficavam nas calçadas conversando. Interessante que isso ainda acontece, mas é difícil de se ver, principalmente passando a 60km/h cortando por um bairro residencial. Fica tudo um pouco embaçado, é difícil mesmo perceber. Mas a pressa é grande.

Aliás, o que se percebe dentro do carro é que o asfalto não esta bom o suficiente, ou que as vias não são largas, ou que aquele retorno é muito longe ou o estacionamento muito caro. Um carro não usa calçada, pra que se importar com a conservação dela? Um carro tem faróis, talvez até de xenon, pra que se importar se a rua tem iluminação? Meu carro da a liberdade plena de ir e vir, pra onde se quiser e quando quiser, pra que alguém se importaria com transporte público decente?
Só se acha um absurdo pagar pedágio, afinal, o IPVA é pra isso. Maldito governo. Cortem gastos e invistam onde se é preciso pro meu carro rodar suave, sem pular a música que está tocando no meu som.

E que senhor som. Tem um zilhão de watts, trocentas caixas de nomes impronunciáveis, e que a maioria mesmo nem sabe o que significa, mas são bem caras. O chão literalmente treme quando toca a última música da moda, e se as outras pessoas não gostam desse tipo de música? Elas não tem o direito de falar nada, ou compram um som mais potente, ou que peguem seus carros e saiam de perto. Cada um com sua liberdade. Pois o interior do veículo é uma ilha particular no meio do absurdo que é a falta de individualidade da sociedade atual. Dentro pode-se liberar o verdadeiro “eu” de qualquer um, mesmo que as ondas sonoras não respeitem os limites de quarteirões.

Fora que a indústria automotiva faz muito bem ao País, da muito emprego. Quanto mais carros se vender, melhor a situação está. Não lembro com clareza, mas tenho quase certeza que se mede a qualidade de vida de um lugar pelo quantidade de carros vendidos. Logo chegaremos ao primeiro mundo. E mesmo que na mesma capa de jornal, a notícia de recordes de vendas de automóveis, dívida a atenção com a notícia de recordes de congestionamento, sem nenhuma previsão de melhora até a hora de um colapso total inevitável, nem vale a pena se preocupar com isso. Temos que apoiar a industria nacional. E se der, financiar um carro por membro da casa, ou trocar aquele velho modelo 2009 pra evitar a desvalorização.

Essa maravilha da tecnologia, que funciona com um motor a combustão, algo inventado há mais de 100 anos. Queimando o que a natureza demorou milhões de anos pra decompor em segundos e soltando no ar a fuligem que dá o tom da nossa época e deixando o som que as cidades emitem, como de um gigante que se dorme profundamente ao longe. A sinfonia da explosão interna. E mesmo que isso esteja transformando o ar em uma coisa quase irrespirável, não vale a pena investir realmente em pesquisa pra coisas novas, pois isso já está aí há mais de 100 anos, gera muito emprego, é a base da econômia. Não se deve mexer com isso, melhor alargar as marginais e construir mais duas pistas. Isso sim vai solucionar quase tudo.

Duas toneladas de aço que sem nenhuma intenção se transformaram na extenção do próprio ser. Uma armadura que permite a pessoa ocupar o verdadeiro espaço que ela sempre quis ocupar. Algo que mostra que quando há, mesmo que fina (se bem que hoje em dia o ideal é blindagem nível 3), uma camada entre o interior e o exterior da pra ser “mais você”. Protegido da pra se fazer coisas que se forem feitas sem armadura, seriam todo tipo de comportamento desaprovado por qualquer um. E provavelmente provocaria muitas trocas de socos. Mas com um carro, se ele for potente, basta correr antes que o olhar de desaprovação de alguém se cruze com o seu.

O carro é a maravilha do século, em pouco mais de 4m² de área, toneladas de aço e design, ele simplifica as relações humanas, a sociedade e o verdadeiro carater geral da maioria atrás do volante, isso em minutos de observação de um cruzamento movimentado. E como geralmente só há uma pessoa por carro, nem é preciso se preocupar em passar vergonha com o olhar do passageiro. Da pra se ser o “eu de verdade” em sua totalidade.