24.1.09

A vida é cruel.

Se você já ouviu falar de Franca, com certeza será por um desses dois motivos. O primeiro é que ela ainda é considerada a capital do calçado, uma cidade inteira movida a base da indústria calçadista. A outra é ela ser também a capital do basquete, algo que orgulha mais os habitantes do que ser movida quase que absolutamente por uma indústria tão suscetível a crises e qualquer mudança no mercado e que foca todos os pensamentos da cidade numa só direção, transformando Franca na capital da falta de opção e falta de cultura. Mas não estamos aqui pra discutir as razões sócio-econômicas de mais uma das crises sofridas pela cidade. O basquete em Franca é mais do que um esporte, é uma religião. Franca é a capital do basquete desde uns trinta anos atrás, de onde saíram a maioria dos grandes jogadores da história do basquete nacional, e onde pessoas que mudaram o basquete no país surgiram. Uma dessas pessoas é o próprio técnico da equipe de Franca, uma vida que se confunde com a história do basquete nacional, uma lenda vida. E se o futebol tem o Felipão e o Vôlei tem o Bernardinho, ambos conhecidos pelas broncas monumentais, e também por estarem vivos até hoje depois de quase terem ataques cardíacos durante os jogos, o basquete tem o Hélio Rubens, cujas broncas são ouvidas mesmo sobre a voz de seis mil pessoas.

Ele é um cara que me faz pensar que realmente existe um estresse bom, é inacreditável que ele não tenha todas as doenças do mundo por ser daquele jeito, mas como o que ele faz é por amor, parece que o estresse só o afeta do jeito bom, incentivando a sempre se superar. É esse tipo de paixão que faz Franca, mesmo sendo um dos únicos times que cobra pelo ingresso, conseguir lotar completamente seu ginásio, o famoso Pedrocão. Hoje é o dia. O evento mais importante da cidade. Na final do estadual, a cidade esta perdendo por dois a um, a série de melhor de cinco. Se perder, deixa a cidade rival ser campeã no templo Francano do basquete, HERESIA! Se ganhar, tem a chance de ser campeã na cidade adversária. Nesse clima fui para o jogo.

É vida ou morte. Uma guerra santa. É o maior evento social que se pode ter na cidade, praticamente a cidade inteira está ali, e se vê todo tipo de pessoa, desde algumas meninas e meninos, entrando na adolescência e que, pelo que parece, só foram ao ginásio para procurar paquera, até quem é marca registrada em todo jogo, sentando sempre no mesmo lugar há décadas. Começa o jogo e o transe é absoluto, com alguns minutos de partida é praticamente impossível não entrar no clima. Seis mil pessoas gritando juntos para apoiar ou vaiando juntos. O som é ensurdecedor. Mesmo eu, que mal vou a jogos, em pouco tempo já estou levantando, gritando e xingando alguém que eu nunca havia visto antes. Nessas condições não é absurdo pensar no transe que Smith sentia nos Dois Minutos do Ódio no livro de George Orwell, é praticamente impossível não se deixar levar pelo clima do lugar. Até certo ponto é assustador. Nem sei como os engenheiros conseguem calcular a resistência que um ginásio deve ter, não sei se há fórmula de física que calcule a energia que emana das pessoas em uníssono pulando e berrando pelo seu time.

É impressionante ver todo mundo extremamente sincronizado apoiando e vaiando. O que torna um pouco difícil acompanhar tudo isso para quem não está acostumado. O basquete é um jogo tão bem pensado para a ser um show, não é a toa que é o esporte dos EUA, suas regras são feitas para o jogo ser dinâmico, onde não há nem um minuto de folga para se pensar, tensão 100% do tempo. Enquanto estou empolgado gritando porque meu time fez uma cesta, o resto da torcida já esta vaiando o ataque do adversário, é fantástico assistir a isso num ginásio. No intervalo dessa loucura percebo o quanto a vida é ironicamente cruel, na hora do intervalo sorteiam um celular, ganhou um menino loirinho, sentado com a família e amigos bem na primeira fileira, atrás do banco da equipe de Franca, um ótimo lugar. Ele vai e busca o prêmio, no meio de milhares de pessoas, numa empolgação explosiva. Ele volta para o seu lugar, e pelo que observei foi o numero da cadeira dele mesmo que foi sorteada, ele mesmo que ganhou o celular e não foi apenas buscar o prêmio para alguém. E no meio de abraços de amigos e da família ele fica até desnorteado pela emoção do negócio. Vendo isso pensei no que deve ser isso pra uma criança, ele nunca mais vai se esquecer disso. Virei para um amigo e falei disso, e nós dois pensamos o quanto deve ser legal ter essa experiência, o quanto deve ser bacana ter isso pelo resto da vida. Passados alguns minutos, um menino gordinho, bem a nossa frente subindo a escada cai com dois copos de refrigerante na mão, molhando-se todo e molhando o lugar de alguns torcedores. Como é irônico isso, parece coisa armada de filme. O pobre coitado que já deve ser alvo de piadas na sua turma pelo seu tipo físico, justo no jogo do ano, sofre esse tipo de peça da vida. Deve ser um belo golpe na auto-estima dessa pessoa, lembrar eternamente daquele jogo não pelo celular ganhado, mas pelo tombo monumental na frente de centenas de pessoas. E o estranho que quando acontece algo desse tipo, temos a impressão de que cada pessoa naquele lugar esta rindo de nós. Como são cruéis essas coisas. O cara que teve seu lugar molhado sai chutando o ar, furioso, e o garoto senta sobre um coral de risadas e de olhares fechados de quem perdeu o lugar.

O jogo volta, num ritmo tão louco que eu já aplaudo, xingo, grito, vaio, vibro quando um dos jogadores adversário cai no meio da quadra, uma loucura. Nem percebo as condições em que estávamos, estava tudo tão divertido que me esqueci do tempo e do placar, estava numa paz interior, como se o melhor de tudo ali não fosse ganhar ou perder, mas tudo aquilo que estava acontecendo. Parecia que cada cesta era a cesta do campeonato. Quando me lembro de olhar o placar, vejo que faltam alguns segundos e o jogo praticamente perdido. Cada cesta era verdadeiramente a do campeonato. No último segundo Franca empata. Nunca vi coisa igual, era como se o goleiro de um time driblasse o time adversário inteiro e fizesse um gol de ouro na final do Campeonato Mundial Interclubes em Tóquio. Isso é a glória do engenheiro que fez o ginásio, agora sabemos que ele suporta qualquer coisa. A essa altura, já não existe mais pessoas ali, é todo mundo um só. Percebo uma criança sentada bem distante, numa cadeira de rodas, com alguma má formação séria, nunca deve ter saído da cadeira. Ali ela batia as mãos e gritava como todo mundo, imagino que pra essas pessoas deve ser difícil fazer alguma coisa junto com alguém sem que haja alguma barreira. Ali não havia. Todo mundo estava ligado, em transe, um som ensurdecedor de vozes gritando como se daquilo a vida de cada um ali dependesse. Uma bola do time adversário é arremessada da linha dos três, se ela cair, tudo esta perdido. Nesse caminho que não deve ter durado nem dois segundos, o ginásio ficou num silêncio absoluto, uma eternidade de tempo se passa até que bola bate no aro e não cai, vamos para a prorrogação.

O ginásio treme. Desligo-me do transe no intervalo para a prorrogação, vejo que as meninas esqueceram-se dos seus paqueras e agora vibram a cada lance, o refrigerante já secou e outras pessoas estão no lugar vibrando também. O menino loiro pula pendurado na grade, e o garoto gordinho esta de pé gritando pelo time. O menino na cadeira de rodas continua a acompanhar as palmas. O cara que perdeu o lugar, pelo que parece, já nem pisca há alguns minutos. Nosso time perde na prorrogação. Mas no final, os aplausos de uma torcida realmente apaixonada pelo time que lutou como pode, abafavam o grito de “é campeão” do adversário.


-Dudu-